Mudanças!

Jean Marc von der Weid, outubro 2025

Não, não se trata aqui das mudanças necessárias para a sobrevivência da humanidade ou, pelo menos, da vida na terra, mesmo excluindo a humana. Também não se trata neste texto de discutir as mudanças na política, na economia e na sociedade brasileira. E não vou tratar aqui das mudanças na saúde, nos costumes ou no modo de vida deste autor. O objeto deste artigo é mais comezinho: as mudanças de endereço.

Estou há duas semanas em processo de me mudar do apartamento onde vivi por 30 anos, o mais longo período em um mesmo lugar em toda a minha vida. Não mudei para longe, outro país ou outra cidade, ou mesmo outro bairro. Já estou morando no novo apartamento, em um edifício situado na mesma rua (avenida Rui Barbosa), a uma distância de apenas 300 metros entre as portarias. Ah! Mudei de andar, descendo do 11º para o 9º.

Estou ainda no Flamengo, de frente para o aterro do mesmo nome, mas a vista não é a mesma. No anterior eu via ao longe, em dias de céu claro, o contorno da serra dos Órgãos, com o Dedo de Deus incansavelmente apontado para cima (ou para Ele mesmo?), com a ponte Rio-Niterói cortando a baía e o grande parque cravado de espigões iluminados à noite, última lembrança de um delírio do governador Carlos Lacerda, que investiu uma fortuna na montagem e mais ainda na manutenção de uma iluminação “de luar”. No novo apartamento, dei um giro de noventa graus e tenho uma vista mais curta e igualmente espetacular, o cartão postal do Rio de Janeiro: a praia de Icaraí em Niterói à esquerda, a entrada da baía, o Pão de Açúcar e o morro da Urca em frente e a enseada de Botafogo à direita.

Esta deve ter sido a 10ª vez que mudei de endereço ao longo dos meus quase 80 anos. Cada mudança foi diferente, tanto nas suas razões como no modus vivendi. Esclareço que “endereço” está entendido aqui como um local de moradia estável e não um abrigo provisório. Se incluísse esta última categoria, as mudanças seriam incontáveis ao longo da minha agitada vida.

Nasci em 1946, em Copacabana, no Hospital São Lucas e fui morar na rua Conde de Baependi, que eu creio ainda estar no Flamengo. A primeira mudança foi rápida, em 1948 a família se arranchou em um pequeno edifício na rua Barão de Icaraí, quase na esquina com a Senador Vergueiro, no Flamengo. Não tenho lembranças destes primeiros anos, mas sei que para lá fomos meus pais, minha irmã mais velha e uma babá trazida da fazenda da minha avó Irene, que também morou conosco no primeiro endereço até falecer. Eram tempos em que as domésticas eram muitas para as famílias da minha classe social e elas moravam conosco. Convivi, até sair de casa, com uma arrumadeira/copeira e uma cozinheira, além da mencionada babá (Gaída), que trocou de emprego quando fomos crescendo e dedicou-se ao que gostava: costureira e doceira. A primeira (Tereza) foi sempre a mesma e não sei de onde veio, mas as cozinheiras se sucederam, inicialmente também vindas da fazenda. A dita fazenda da minha avó eu pouco vi, mas sei que se chamava Engenho do Mato, hoje um bairro de mesmo nome em Niterói.

O 44/22 da Barão de Icaraí devia ter uns 120 metros quadrados e nele éramos 10 moradores: meus pais, os cinco filhos e as três domésticas. Um banheiro para a família e um para as domésticas, sorte delas. Na rua havia poucos edifícios, quase todos de 4 ou 5 andares, com dois apartamentos por andar. Morávamos de fundos e, da minha janela, eu podia ver o jardim da embaixada do Chile, onde, uma vez por ano, uma orquestra tocava músicas típicas cujo nome aprendi no exílio, cuecas, na festa do Dia da Independência. Do outro lado da rua, uma enorme casa ocupava quase toda a extensão do quarteirão entre a Senador Vergueiro e a Oswaldo Cruz, uns 400 metros. Tinha um grande jardim onde o casal de velhos proprietários nos permitia, às vezes, brincar com seus lindos e dóceis cães, da raça Irish Setter.

A rua bucólica, muito bem sombreada por frondosas árvores, era das mais tranquilas, perturbada apenas no dia de feira quando a barulheira dos caminhões descarregando mercadorias e os gritos dos vendedores chegavam até nós. Também era comum, naqueles tempos, a circulação de vendedores ambulantes: verdureiros, vassoureiros, baleiros, fruteiros, peixeiros e sorveteiros. Cada um tinha uma música de pregão e a garotada da rua andava atrás deles repetindo e, às vezes, inventando novas letras de gozação. O velho português peixeiro cantava: “peixe, camarão…”, e nós engatávamos um “tá podre, mas tá bão”. Ele se dava ao trabalho de nos explicar, a cada vez, para nossa risada: “não, não, não; quando está podre não está bom”. O baleiro era um dos poucos que não era português e o chamávamos de “tinguelingue”, onomatopeia do instrumento com o qual ele anunciava sua chegada. Já o sorveteiro cantava “sovetinho, sorvetão, sorvetinho de ilusão, quem não tem quinhentos réis,  não toma sorvete não”. Pensando bem, minha memória está me confundindo. Na minha infância a moeda nào era mais os réis, mas o cruzeiro. Devo ter ouvido a minha mãe cantar o pregão do sorveteiro do seu tempo e juntei com a lembrança do meu.

Havia também as duplas de cantadores pedintes, sempre um cego e um coxo (verdadeiros e falsos), que tocavam violinhas e pandeiros embaixo da área de serviço, perto da garagem. Tocavam modinhas, marchinhas e música caipira, hoje promovida a sertaneja, e nós pedíamos moedas (que tinham a cara do Getúlio) aos mais velhos para jogar para eles pela janela da cozinha. Eram tempos em que moedas valiam alguma coisa.

Vivi neste apartamento até os 22 anos, quando saí de casa para entrar na clandestinidade, ao ser condenado em um processo da segunda auditoria do Exército e me candidatar à presidência da UNE. Parti de mãos abanando, apenas com um passaporte expedido em um par de horas pelo compreensivo embaixador suíço, a pedido do meu pai, cidadão deste país. Monsieur Boucher acabou sendo escolhido pelos guerrilheiros da VPR para ser o quarto e último diplomata sequestrado no Brasil e eu, meio suíço e meio brasileiro, entrei na lista dos presos políticos trocados por ele.

Não tinha a intenção, nem a necessidade premente, de disparar para São Paulo na véspera do meu julgamento no tribunal militar. Poderia ficar clandestino no Rio de Janeiro, mas a direção da AP organizou a minha partida diretamente do apartamento onde estava reunido com três dos co-acusados, suas famílias e advogados, discutindo justamente o comparecer ou não ao tribunal no dia seguinte. Segundo os advogados, todos bambambãs na profissão, era certa a nossa absolvição se comparecêssemos e igualmente certa a nossa condenação se não o fizéssemos. Confiei mais nos meus instintos e nos conselhos (em off) do Modesto da Silveira, que tinha menos status do que os nossos advogados (Evaristo de Morais, Heleno Fragoso, Paulo Goldracht, Oswaldo Mendonça), mas era mais político (Partidão) do que eles. No fim das contas, todos fomos condenados a dois anos de prisão (como previu o Modesto). Eu e o Baianinho do Calabouço não comparecemos, Carlinhos compareceu e se mandou antes da sentença ser dada, retirado do tribunal pela Bia, nossa dirigente na AP, e Pedro Lins ficou solitário para ouvir a ordem de prisão.

Aproveito para fazer um parêntese nestas memórias e comentar a legislação de segurança nacional da ditadura. Fui julgado pela lei de 1967, que foi reformulada em 1969. Na primeira versão, a ênfase dos milicos e seus legisladores obedientes era punir atos de oposição do tipo participação em manifestações de rua ou em organizações proibidas (como a UNE ou UEEs). Na segunda, a ênfase era punir os militantes da luta armada. As leis respondiam à realidade da oposição antes e depois do AI-5. A diferença essencial estava no que hoje se chama de dosimetria.

No processo em questão, eu fui condenado a dois anos por ter (supostamente) participado da queima de um carro do exército em uma manifestação estudantil reprimida pela polícia militar. Nem eu nem nenhum dos três outros acusados participamos da queima da viatura, na linguagem dos milicos, mas estava entre os dirigentes da manifestação (um dos acusados, Pedro Lins, sequer estava na manifestação).

Mais tarde, fui processado por ser presidente da UNE clandestina e a acusação pediu a pena máxima de cinco anos. No processo da AP foi pedida uma condenação de três anos de prisão. Em comparação, os processos envolvendo participação em organizações de luta armada (que ainda não tinha sido lançada em 1967) tinham uma condenação máxima de três anos, endurecida para até dez anos na lei revista em 1969. 

Todos sabem hoje, depois do julgamento dos golpistas, que a dosimetria contra os atentados à democracia e ao Estado de Direito ficou pesada, e com boas razões, na atual lei de segurança nacional votada pelo Congresso, ironicamente durante o governo do golpista mor Bolsonaro. No eterno casuísmo dos nossos legisladores, agora se tenta aliviar a dosimetria para favorecer os golpistas.

Durante meu quase ano de clandestinidade criei uma rede de abrigos pessoais no Rio e em São Paulo, evitando cuidadosamente ficar nos aparelhos da AP. No Rio, apenas o Victor Hugo conhecia estes locais e, em Sampa apenas o Adura. Em Sampa, fiquei no apartamento do Claudio Abramo e depois no de uma vizinha dele, a Vera Veiga ou no da Amélia Toledo, na mesma rua Pinheiros. No Rio, tinha muitas alternativas para me abrigar em vários bairros da zona Sul e em uma casa de um funcionário da minha faculdade, em Coelho Neto. Eram apartamentos e casas de amigos meus ou dos meus pais, que foram exemplarmente solidários naqueles anos de chumbo.

Meus temores com a vulnerabilidade dos aparelhos da AP eram bem fundados, pois acabei caindo em um deles, na rua Fonte da Saudade, perto da Lagoa Rodrigo de Freitas. Portava comigo um kit de higiene pessoal, uma muda de roupa e um livro que variava à medida que acabava de lê-lo. Usei roupas emprestadas ou que me eram enviadas pela minha família quando havia chances de entrega. Tinha comigo um chaveiro com mais de cinco chaves dos meus “aparelhos pessoais” e consegui me livrar dele antes de ser preso, evitando ter que responder na tortura sobre estes locais e salvando meus hospedeiros de serem implicados se não resistisse às torturas.

A primeira residência estável que tive depois de sair de casa foi uma cela na Ilha das Flores, onde ficava o batalhão Paissandu (ou seria o Riachuelo?), do corpo de Fuzileiros Navais. Mudei de cela umas duas vezes (424 e 436, se não me engano), fora as 4 ou 5 passagens mais curtas (entre uma semana e um mês) em solitárias punitivas devido a algum confronto com os sargentos ou oficiais. Na Ilha, fiquei do dia 2 de setembro de 1969 até 20 de outubro de 1970, quando fui transferido para o presídio do Galeão, junto com outros cinco militantes da AP. Também aí tive uma passagem por uma solitária, que durou todo o tempo do sequestro do embaixador suíço, até sairmos banidos para o Chile, em 14 de março de 1971.

Nos 45 dias desta minha primeira passagem por Santiago, eu morei no Hogar Pedro Aguirre Cerda, perto do parque Cousiño, hóspede do governo Allende. Dali parti para a Europa e passei uns três anos pulando de país em país, organizando uma campanha internacional de denúncia da ditadura militar brasileira. Tinha um pouso fixo em Paris em um quarto da Casa da Suíça na Cité Universitaire, mas raramente por lá aparecia, entre uma e outra viagem.

Quando voltei para o Chile com intenção de lá residir errei o timing completamente e cheguei 10 dias antes do golpe que assassinou Allende e muitos outros militantes e a própria democracia chilena, esta última ressuscitada em 1988. Nem deu para procurar onde morar, fiquei hóspede do Luíz Travassos, da Marijane e do Zé Duarte em um apartamento das Torres de San Borja até o dia do golpe e depois pulei de lugar para lugar segundo as possibilidades e conveniências. Na Argentina, onde fiquei por 4 meses depois de escapar do Chile, não foi muito diferente. Tinha amigos que me hospedavam em diferentes lugares da cidade e dos subúrbios, sem um pouso fixo.

Voltei para a França com mulher e dois filhos (dizia o Darcy Ribeiro que eu tinha sido esperto e abreviado as preliminares de namoro, casório, procriação e filhos pequenos). Ainda tinha direito ao quartinho na Cité, mas não dava para quatro e fui morar no boulevard Massena, perto do metrô Ivry, no catorzième arrondissement, entre 75 e 77. Neste ano nos mudamos para o Boulevard Diderot, perto do metrô Nation, no onzième. Aí eu morei até março de 1980, quando voltei (de vez) para o Rio de Janeiro após a anistia.

Em todas estas mudanças, até Diderot, tudo era muito simples. Eu era, como dizia uma amiga brasileira, “portátil”. Tudo que eu tinha cabia em uma malinha e uma pasta com livros. Em Diderot, moramos em um quarto andar, sem elevador e levamos nossos escassos pertences em uma pequena caminhonete. Além de malas com as roupas de cada um, alguns livros e brinquedos, havia um fogão, uma geladeira, uma tábua com cavalete (mesa de armar) e três colchões de espuma (camas mutáveis em sofás). Carreguei tudo isso nas costas por quatro andares o que mostra mais como eram pequenos e (relativamente) leves do que a minha força. Ao fim do exílio não tinha acumulado mais do que livros, mas estes encheram 4 avultados baús de metal que eu despachei de navio para o Brasil. Continuava quase portátil.

Na volta ao Brasil pós exílio, eu morei por um ano com mulher e filhos adotivos em um apartamento quentíssimo em Botafogo e começamos a acumular pertences. No entanto, ao me separar desta companheira, saí só com livros, discos e roupas, ainda bem portátil. Pressionado pelas restrições de emprego para um ex-banido fui morar na África (Guiné Bissau) em duas passagens de 8 meses, em 1981 e 1982, levando todos os meus pertences em uma malinha de mão, tudo bem portátil. Em Bissau, morei em três residências. Um apartamento em frente ao porto, onde vários cooperantes do ministério do Plano se arranchavam e que o Diógenes de Oliveira apelidou de Chez Rosá (em homenagem a Rosa Luxemburgo); uma casa próxima do hospital central dividida com um cooperante português, o Branquinho; e uma casa no subúrbio dividida com uma família e um amigo argentinos.

Em 1983, me fixei em um apartamento na Ladeira dos Tabajaras em Copacabana. Nele tinham morado, ao longo de mais de 10 anos, uma série de pesquisadores americanos (chamados de brasilianistas) que vinham estudar diferentes aspectos do nosso país. O apartamento era super bem equipado, com tudo que é necessário para se viver. Comprei estes equipamentos (inclusive um telefone, na época um bem caríssimo) por mil dólares. Foi quando deixei de ser portátil e adquiri bens materiais substanciais (tudo que os americanos deixaram para trás).

Depois de casar-me com a Monica, minha atual e definitiva companheira, em 1989, fomos morar no Catete, na rua Buarque de Macedo, já que na Tabajaras não havia espaço suficiente para morarmos (eu, ela e a filha, Ana Luiza). Esta mudança foi bem mais complicada, pois a portabilidade tinha acabado, mas dela não participei por estar viajando a trabalho. Monica carregou o “piano” sozinha na minha ausência.

Fizemos uma outra mudança penosa, com a minha participação desta vez. A distância era curtíssima, apenas saímos do apartamento de fundos para um de frente no mesmo sétimo andar, alguns metros de corredor. Mas levamos tudo nas costas, somente pagando uns ajudantes do porteiro para carregarem os móveis mais pesados. Embora não tivéssemos muitos bens, carregá-los já foi uma dureza.

Com a Monica sendo aprovada em um concurso para juíza do trabalho a família passou a ter recursos bem mais ampliados, já que tanto o meu salário de dirigente de uma ONG quanto o dela como advogada da COBAL (demitida pelo Collor na limpa de funcionários públicos no início do seu governo) eram bem modestos. Monica economizou espartanamente os seus ordenados de juíza, pois vivíamos na Buarque de Macedo pelos anos em que estudou furiosamente para o concurso apenas com o meu salário e isto continuou durante o seu primeiro tempo de juíza, 1993/1995. Foi ela quem decidiu que tínhamos que comprar um apartamento e achou uma pechincha espetacular na Rui Barbosa, 80. Foi o primeiro imóvel que eu e ela compramos na vida e representou um salto de qualidade no morar.

Era um imóvel detonado, que compramos aproveitando algum recurso que eu tinha guardado das minhas consultorias com o PNUD, na África e, sobretudo, as economias dela, mais um donativo e um empréstimo do meu pai e outro de uma amiga. Depois de pagarmos as dívidas, juntamos mais alguma grana e fomos reformando o apartamento, onde moramos até umas semanas atrás.

Foram 30 anos de estabilidade e de acumulação de coisas. Livros, discos, CDs e lembranças africanas e latino-americanas pelo meu lado e bens mais práticos pelo dela. Herdamos muita coisa quando faleceu a minha mãe, em 2014 e o apartamento foi ficando atulhado. Ana casou-se e foi morar em Sampa e depois em Chicago. Minha filha Anaïk, que infelizmente nunca morou conosco, também se casou e trilhou caminho parecido, morando em Sampa e nos Estates, só que em São Francisco e agora em Los Angeles. Mas o apartamento sempre guardou um quarto para quando viessem ao Rio, e um quartinho para seus filhos, meus netos Oliver (da Anaík), hoje com 9 anos e Alice (da Nana), hoje com 8. Monica, sempre a pessoa com mais iniciativa neste casal, decidiu que era hora de buscarmos um espaço maior.

Juntamos as economias de muitos anos de trabalho como juíza e muitas consultorias minhas com a FAO e o PNUD, vendemos o 80 da Rui Barbosa e compramos outro na mesma avenida, como escrevi no começo destas lembranças.

Desta vez a mudança foi penosa. Cinco dias embalando e transportando uma inacreditável quantidade de coisas em quase 200 caixas. Tínhamos previsto fazer uma triagem e desapegarmos de uma boa parte de badulaques variados, mas fomos apertados pelo timing entre o fim das obras e o momento da entrega do nosso antigo apartamento aos seus novos donos e tivemos que deixar esta parte para depois. Veio tudo para cá e estamos há duas semanas desembalando e tentando arrumar as coisas no novo espaço, maior, felizmente, mas ainda assim complicado. Embora este acúmulo de bens ao longo de tantos anos exija um esforço de racionalização, a decisão de nos desapegarmos de cada um dos objetos é dilacerante.

Meu apego com livros é um exemplo deste dilema. Três vezes na minha vida eu me desfiz de centenas de livros por pura falta de espaço. Analisei cada exemplar aplicando um critério básico de imaginar se iria um dia relê-los, mas o critério revelou-se falho. A questão não é se posso reler centenas de livros nos anos (espero) que me restam viver, mas se posso querer reler um deles e descobrir que tinha desapegado. Me livrei, por exemplo, das obras completas do Lenin com o argumento de que, nos 40 anos em que as possuí, eu só tinha lido uns seis. Mas ao ler um livro sobre a história da revolução russa encontrei uma passagem que despertou a minha curiosidade e a vontade de buscar um escrito original de Lenin sobre o episódio. Infelizmente, o livro onde ele podia ser encontrado tinha sido doado. Fiquei com seis livros da coleção e doei 23, inclusive o que precisei.

Outros livros são parte da minha história pessoal. Quando garoto, eu gastava a mesada que recebia do meu pai em livros e comprei, entre muitos outros, a coleção das obras do autor escocês Conan Doyle, mais conhecido como o criador do personagem de histórias policiais, o detetive Sherlock Holmes. Doyle escreveu outros tipos de livros e eu adorei a série dos romances históricos, tema que continuo lendo muito até hoje. Também comprei a terceira série inteira, uma miscelânea de temas que incluía histórias de medicina (primeira profissão do autor), espiritismo, pirataria, boxe e outros mais. Cada série, publicada pela editora Melhoramentos, tinha capa com uma cor diferente: vermelho para os livros de Holmes, azul para os históricos e verde para a miscelânea. Tudo isso ficou para trás quando saí de casa “com as tranças voando” (como dizia a minha mãe) para “cair na clandestinidade”, como se dizia na época no jargão da esquerda.

Ao voltar ao Brasil com a anistia descobri que meus irmãos tinham canibalizado a minha biblioteca e meus pais vendido o que sobrou. Adeus coleções da editora Terra, Mar e Ar, do Tarzan, os livros de Francisco Marins e Monteiro Lobato, Júlio Verne, a coleção amarela de romances policiais, entre muitos outros. Dos livros que meus irmãos tinham se apropriado recuperei apenas as três séries do Conan Doyle, já bem machucados, planejando encaderná-los para melhor conservação. Era só saudosismo de tempos de pré-adolescente, pois no exílio eu tinha comprado a série de Sherlock Holmes em francês e a série histórica em inglês. A coleção em português ficou em uma caixa, esperando a encadernação que não veio e acabei desapegando nesta última mudança. Mas doeu botar tudo no lixo…

Estou desapegando de outras coisas, menos dolorosas, felizmente. Meu taco e bolas de sinuca irão para os sobrinhos da Mônica. Meus casacões de frio dos tempos de Paris também vão partir. Embora ótimos e bem conservados ficaram pesados para o meu corpo envelhecido e agora uso coisas mais quentes e mais leves.

Mais difícil é descobrir o que fazer com uns vinte retratos e pinturas de parentes. Meus pais, meus avós paternos e maternos, meu tataravô Mauá, meu antepassado general de Napoleão são parte da árvore genealógica que não pode ser podada sem cerimônia, mas não há parede suficiente para pendurá-los. Já as centenas de fotografias de toda uma vida terão que ser triadas para conservar o essencial.

O fato de que não selecionamos os badulaques antes da mudança significou o transporte de muito mais caixas e, sobretudo, a necessidade de desembrulhar uma por uma das peças e achar onde colocá-las. Para livros, CDs e LPs os espaços estavam previstos, mas o esforço físico de tirá-los das caixas e colocá-los em estantes significou movimentos abdominais contínuos para cima e para baixo que desarticularam a minha velha e maltratada espinha dorsal. Uma dor ciática que não me acometia há décadas voltou com toda força. A velhice cobra seu preço a cada dia e é implacável.

Agora creio que esta será a minha morada final e não pretendo mudar de endereço outra vez. O mar, que está agora a menos de 300 metros da minha porta, deve subir até inviabilizar as pistas do Aterro do Flamengo e invadir os edifícios da Rui Barbosa, mas não estarei vivo para ver isto acontecer (previsão para o final do século, mas que pode ser antecipada com a aceleração em curso do aquecimento global).

Já a hipótese de uma reviravolta política (como a que nos ameaçou em 2018 e, sobretudo em 2022, com a ascensão de um regime neofascista, se o golpismo bolsonarista tivesse tido sucesso) é um risco mais palpável (toco na madeira para isolar este mau agouro). Em 2018 cheguei a planejar uma retirada para Portugal, suspensa pela pandemia. Com a evolução da política e economia europeias esta opção ficou menos atraente e os custos vão ficando proibitivos. O mais provável será ficar aqui e enfrentar o regime. Estou velho demais para recomeçar em outro país e mais ainda para ir parar na cadeia, mas não vejo outra alternativa senão ficar e correr os riscos. 

Não me resta, pelas probabilidades estatísticas, muito tempo neste mundo. Enquanto puder seguirei lutando por um planeta e um país onde valha a pena viver. Depois espero que as minhas cinzas fertilizem alguma árvore na floresta da Tijuca e que eu possa jazer, metaforicamente, na fossa comum do tempo.

Como diziam os gregos da antiguidade, nunca morremos enquanto as novas gerações se lembrarem de nós, mas temo que elas vão ter muito com o que se ocupar e preocupar com as crises planetárias prometidas pela ciência. A última vitória do capitalismo será nos levarmos ao holocausto da humanidade. Será também sua derradeira derrota.


Jean Marc von der Weid

Ex-presidente da UNE entre 1969 e 1971

Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983

Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016

Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta



Resposta

  1. Avatar de João Leonel Anjos

    Isso é o que chamo de uma autobiografia sintética. Tudo de bom prá vc Jean Marc

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