A proposta de alteração da Lei 5.194/66 falha ao ignorar a desvalorização profissional, perpetuar privilégios e precarizar a formação, desviando a categoria de uma agenda de desenvolvimento estratégico.
Amaury Monteiro Junior
A realização de audiência pública na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados para debater o Projeto de Lei (PL) 1024/2020, que visa alterar a Lei nº 5.194/1966 (Lei dos Engenheiros), expôs uma profunda desconexão entre a proposta legislativa e as reais necessidades da Engenharia brasileira no século XXI. O texto em discussão revela um foco perigoso em questões internas e benefícios corporativos, em detrimento da valorização profissional, da qualidade da formação e, sobretudo, do papel estratégico da Engenharia para a Soberania Nacional.
1. Inconstitucionalidades e a Moralidade Pública: O Escândalo das Benesses
O PL 1024/2020 carrega dispositivos que afrontam diretamente a Constituição Federal, violando os princípios da Impessoalidade e Moralidade (Art. 37, caput, da CF).
Os Artigos 27 e 34, que tratam da concessão de “benefícios pecuniários ou vantagens” a dirigentes e conselheiros dos CREAs e do Confea, configuram um inaceitável auto-benefício, transformando um sistema mantido por anuidades em um balcão de vantagens.
Além disso, a autorização para que regras eleitorais e de desincompatibilização sejam definidas por meras resoluções do Confea (Art. 34) viola o princípio da Reserva Legal, uma vez que tais matérias deveriam ser definidas exclusivamente por Lei Federal, resguardando a isonomia e a moralidade eleitoral. O pleito das entidades é claro: vedação expressa de qualquer vantagem pecuniária ou benefício que não seja ajuda de custo e diárias para o exercício da função.
2. O Desvio de Finalidade e a Perpetuação de Mandatos
A busca pela ampliação dos mandatos de 3 para 4 anos, combinada com a ausência de exigência de desincompatibilização, é uma tática que visa a perpetuação da atual oligarquia dirigente.
Essa proposta, que jamais foi objeto de deliberação ou validação nos 12 Congressos Nacionais de Profissionais – a maior instância de debate da categoria – demonstra que o PL é orientado por interesses de grupos, e não pela vontade da base, desrespeitando a própria história de mobilização da Engenharia. A categoria não pode aceitar um PL que desvia o foco do desenvolvimento nacional para a blindagem do poder.
3. O Esvaziamento do Salário Mínimo Profissional: A Desvalorização Institucional
A defesa da Engenharia passa, obrigatoriamente, pela Valorização Profissional, cujo alicerce é o Salário Mínimo Profissional (SMP), estabelecido pela Lei nº 4.950-A/66.
A crítica mais contundente ao PL 1024/2020 reside no fato de que ele ignora a desvalorização crônica do SMP. Após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que desvinculou o SMP do Salário Mínimo nacional, não foi criado um índice alternativo de reajuste. O PL 1024/2020, ao não endereçar esta lacuna, condena o Salário Mínimo Profissional à erosão inflacionária e à irrelevância, esvaziando o principal instrumento legal de defesa do engenheiro.
O novo texto legal tem a obrigação de prever um índice de reajuste obrigatório para o SMP, garantindo sua atualização anual e combatendo a desvalorização profissional que penaliza especialmente o engenheiro recém-formado e o desempregado.
4. A Obsolescência Regulatória: Desafios do Século XXI Ignorados
A Engenharia é o motor do desenvolvimento, mas a lei proposta é míope e obsoleta. O PL 1024/2020 falha em incluir uma “agenda de futuro” que é vital para a competitividade e a autonomia tecnológica do país.
A modernização da lei deveria ser concebida como um Marco Legal da Inovação na Engenharia, estabelecendo diretrizes claras sobre:
- Tecnologias Estratégicas: Inserção e regulação de temas como Modelagem da Informação da Construção (BIM), uso da Inteligência Artificial (IA) e Cibersegurança em projetos e infraestrutura nacional.
- Governança e Transparência: Obrigatoriedade de modernização de processos e adoção de portais de dados abertos para o Sistema CONFEA/CREA, aproximando-o da sociedade.
- Soberania Tecnológica: O texto deveria orientar e fortalecer a participação do engenheiro brasileiro em projetos estratégicos de Defesa, Energia e Telecomunicações, e prever a revisão da lei a cada ciclo de 5 anos para garantir a adaptação tecnológica.
5. O Colapso da Formação: PL 1024/2020 e a Engenharia Semipresencial/EAD
O silêncio do PL sobre a degradação da qualidade do ensino é um dos maiores riscos à Soberania Nacional. A proliferação de cursos, com a expansão da formação semipresencial e a distância (EAD) em sua essência tecnológica, compromete a base laboratorial, a pesquisa e a formação de equipes multidisciplinares.
Ao permitir que essa tendência se normalize, a PL 1024/2020 colabora com a produção de uma “geração despreparada”, incapaz de prover soluções complexas e de contribuir efetivamente para o desenvolvimento autônomo do país.
É imperativo que a nova lei confira ao CONFEA o poder de veto ou emissão de parecer obrigatório ao Conselho Nacional de Educação (CNE) e ao Ministério da Educação (MEC) para a abertura e manutenção de cursos de Engenharia, garantindo o rigor técnico e a qualidade da formação essencialmente presencial.
Conclusão: Um Chamado à Responsabilidade Estratégica
O PL 1024/2020, em sua redação atual, é um retrocesso institucional. Ele se concentra em garantir a manutenção de um status quo burocrático e em perpetuar a oligarquia dirigente.
O desafio posto à CCJC é de responsabilidade estratégica. O caminho é a rejeição do PL 1024/2020 em sua totalidade para que o texto seja devolvido à Casa e refeito sob uma perspectiva que priorize a Valorização Profissional, o combate à inconstitucionalidade e a modernização tecnológica. A legislação da Engenharia deve ser um instrumento a serviço do Brasil, garantindo que o Sistema CONFEA/CREA sirva, de fato, à Soberania Nacional e à ética pública.
Amaury Monteiro Jr.

Engenheiro Civil, Professor Universitário, participante da Coordenação do movimento Geraçao 68 – Sempre na Luta

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