Jean Marc von der Weid, novembro de 2025
Cada dia que passa, os jornais noticiam mais dados sobre a Chacina da Vacaria, nome mais correto para a operação das polícias do Rio de Janeiro nos complexos da Penha e do Alemão. Novos números são apresentados, corrigindo, complementando e qualificando os anteriores. A fonte mais citada é a própria polícia ou o nefando Governador Castro.
Os ditos números causam estupor num primeiro momento, mas, com o passar dos dias, a mim eles provocam surpresa, daí o título deste artigo e quero compartir algumas hipóteses e análises.
O número de policiais militares e civis envolvidos não muda; são sempre os citados desde a primeira conferência de imprensa do governador e os comandantes da PM e da polícia civil e o secretário de segurança: 2 mil e 500. Por que tantos agentes? Respondendo a questionamentos do STF, Castro justificou a megaoperação pela necessidade de enfrentar o poder de fogo do Comando Vermelho. Segundo ele, a inteligência do governo (?) indicava a presença de 500 bandidos fortemente armados no território da operação. Em outro momento ele citou o armamento detectado pelos serviços de inteligência como alcançando mil fuzis.
O governo do RJ anunciou a captura de 99 (inicialmente eram 113) e a morte de 117 bandidos e a apreensão de 97 fuzis, 25 pistolas e 1 revólver (números que se mantiveram quase constantes, com uma pequena diferença no de fuzis).
Finalmente, a operação (supostamente preparada durante um ano) pretendia deter 100 criminosos com mandados de prisão emitidos pela justiça.
Estes primeiros números geram mais perguntas que respostas.
Primeira contradição: se os bandidos eram 500 e os fuzis eram 1000 ou bem cada combatente do tráfico portava dois fuzis ou o CV estava estocando armas nos complexos citados.
Segunda contradição: a operação reivindicou total sucesso no cerco aos bandidos, mas pelos números do governo, menos da metade dos combatentes previstos pela inteligência da polícia foi presa ou morta. Fazendo as contas, 282 bandidos teriam escapado ao cerco. Por outro lado, o número de fuzis apreendidos é muito menor do que o previsto pela polícia e, pelas contas, 903 fuzis não foram localizados.
Terceira contradição: em uma operação que durou da manhã até a noite com pesados tiroteios, escutados com grande intensidade no começo do operativo, mas que continuaram até a noitinha de forma intermitente, o número de policiais feridos foi de 15 e o de mortos 4, enquanto o número de bandidos mortos foi de 117 e o de feridos foi zero. Como explicar estes números? A maior parte dos corpos dos bandidos foi encontrada (pela população dos complexos) depois de encerrada a operação, todos localizados na mata da Vacaria. Como é possível que todos os bandidos encontrados na mata tenham morrido em combate? Ninguém foi ferido e posteriormente preso?
Se esses mortos da Vacaria tivessem sido vitimados em combate haveria muito mais feridos do que mortos, como ensinam as estatísticas universais de ações militares. A baixa intensidade do tiroteio na fase final da operação indica que este cerco final aos bandidos foi uma ação de extermínio, com a polícia liquidando todos os que tentavam fugir ou se render. É mais do que provável que os bandidos mortos na fase inicial da operação também tenham sido eliminados, seguindo a mesma lógica da falta de feridos entre os combatentes do CV vitimados durante os enfrentamentos pela manhã.
A hipótese de uma resistência suicida dos bandidos no cerco final na mata da Vacaria não se sustenta também pelo fato de que nenhum policial foi morto ou ferido nesta fase. Como é possível que (pelo menos) 60 combatentes, lutando corajosamente e dispostos a morrer pelo CV em uma Termópilas tupiniquim (ver artigo anterior) não tenham sequer arranhado seus inimigos?
A totalidade dos presos pelo operativo ocorreu ao final da fase inicial do combate. Por que estes se renderam e os que escaparam para a Vacaria lutaram até a morte? Os detalhes de cada fase da operação não foram revelados pela polícia e, por isso mesmo, não podemos saber as circunstâncias em que estes presos foram capturados. A polícia diz que todos se renderam ao serem acuados nas vielas dos complexos na fase inicial. Quanto ao que se passou na mata há um silêncio total.
Terceira contradição: o governo afirma que apenas 17 dos 99 presos na operação tinham mandados de prisão emitidos, mandados esses que eram a justificativa para toda a ação policial. Não se sabe quantos dos 117 bandidos mortos estavam na lista dos mandados emitidos. Provavelmente nenhum, ou o governo teria apresentado este dado, já que tinha os nomes de todos ou quase todos os mortos. Ou a inteligência da polícia foi muito falha ou a grande maioria dos procurados escapou ao cerco e os mortos e presos em massa eram outros. Para a propaganda de Castro não importa quem morreu ou quem foi preso. Para fins políticos o que importa são os altos números de vítimas entre os bandidos, fossem eles quem fossem.
As contradições nos números apresentados pelo governo do Rio de Janeiro ao defender a operação Chacina só reforçam o que escrevi (eu e muitos outros) no último artigo: o objetivo desta iniciativa foi marcar uma posição política, visando capturar o apoio de uma população aterrorizada pela violência das facções do tráfico de drogas e pelo seu controle indisputado em amplas áreas da cidade do Rio de Janeiro.
A operação Chacina foi pensada para marcar uma posição contra o governo federal e contra o STF, aproveitando a percepção da população que os vê como omissos ou lenientes em relação ao combate ao crime. A resposta da opinião pública, expressa nas pesquisas da Quaest, confirmou a aposta de Castro. O apoio à política de brutalidade (da polícia) contra a brutalidade (do CV) rendeu os dividendos buscados pela extrema direita.
O bolsonarismo e seus aliados da direita não perdeu tempo. Os governadores de Goiás, Minas Gerais, São Paulo e Paraná vieram fazer coro com Castro dois dias depois da chacina e o inacreditável Nikolas Ferreira, o garoto prodígio do bolsonarismo postou uma mensagem chamando o PT de Partido dos Traficantes. Ciro Nogueira assinou hoje um artigo no Globo defendendo a chacina e desafiando o governo federal.
No congresso a direitalha lançou um projeto de lei, já aprovado na Comissão de Segurança da Câmara (dominada pela bancada da bala), visando assimilar as facções do tráfico ao terrorismo. A nova terminologia é “narcoterrorismo”. O objetivo é criar mecanismos que facilitem uma repressão descontrolada das polícias, afastando os mecanismos de controle existentes (os quais, aliás, vem sendo ignorados por vários governadores, notadamente Castro e Tarcísio). É uma nova versão do vale tudo usado pelas forças armadas no tempo da ditadura para enfrentar a oposição e, lembremos, foi usada com a mesma sanha contra os que optaram pela luta armada ou pelos que optaram por meios pacíficos para se opor ao regime militar.
O governo federal ficou na defensiva com medo do sentimento popular pró violência policial (“bandido bom é bandido morto”) e só agora, uma semana depois da operação, Lula se manifestou condenando a matança e propondo uma investigação da polícia federal sobre os “excessos”. Foi tarde, mas é um passo necessário, mesmo a contracorrente da opinião pública.
Não é possível fingir que este desafio da direita não atinge o governo. E não é possível se curvar, por razões eleitoreiras, ao sentimento popular equivocado que apoia o vale tudo. Estamos diante de uma opção cruel e um risco mortal. O governo poderia tentar, como começou fazendo, desviar o foco do embate, mas é claro que fugir da raia não muda a percepção do eleitorado sobre a posição do governo, de Lula e da esquerda.
O importante agora é aprofundar o debate e propor medidas justas para o combate ao crime dentro das normas do estado de direito e da humanidade. Há várias propostas legislativas do governo que vão na direção correta e tem que ser defendidas e apoiadas em forte argumentação nas redes mostrando que as chacinas nunca resolveram nada.
Mais ainda, operações bem-sucedidas da PF, visando desmantelar a máquina das facções seriam da maior importância nesta luta. Mobilizar forças para controlar o trânsito de drogas e de armas nas fronteiras e intervir nos negócios das facções, neutralizando seus esquemas de lavagem de dinheiro seriam fundamentais para termos argumentos para reverter a onda de barbárie que a direita quer explorar.
Jean Marc von der Weid

Presidente da UNE entre 1969 e 1971
Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983
Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016Militante do movimento Geração 68 Sempre na Lu

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