Rio, festa permanente sob o Cristo que vigia

Paulo Baía


Hoje é 28 de dezembro de 2025. O Rio de Janeiro acorda em estado de combustão espontânea. Um calor de micro-ondas, desses que não vêm apenas do céu, mas parecem brotar do fundo da terra, subir pelo asfalto, atravessar as solas dos pés e se instalar diretamente no pensamento. O calor não é meteorológico. É existencial. É o Rio se afirmando, mais uma vez, como cidade onde tudo acontece ao mesmo tempo e sem pedir licença.


O Rio é assim. Uma cidade de contrastes explícitos, quase indecentes. Onde o assalto convive com o gesto mínimo de gentileza. Onde o trânsito esgota e a paisagem absolve. Onde a feiura não pede desculpas à beleza e a beleza não se constrange diante da feiura. Ambas se encaram todos os dias, sem cerimônia, como vizinhas obrigadas a dividir o mesmo elevador da história, apertadas, suadas, resignadas à convivência.


O Rio de Janeiro é sempre uma festa. Mas não a festa memorialista de Ernest Hemingway, quando decretou que Paris era uma festa. A festa de Paris cabe na lembrança, na saudade, na literatura. É uma celebração do tempo que passou e foi transformado em estilo. O Rio não cabe nisso. A festa aqui não se deixa arquivar. Ela acontece agora. No presente bruto. No agora que queima a pele, escorre em suor, gruda na roupa, mistura cheiro de sal, gasolina, fritura e protetor solar. A festa do Rio não é nostalgia. É acontecimento. É excesso. É insistência.


O calor de hoje é tão implacável que Leon e Iza, meus dois Chow Chow de pelagem exagerada e olhar ancestral, simplesmente decretaram greve. Nada de Parque do Flamengo. Nada de árvores generosas. Nada de mar fingindo refresco. Eles escolheram o ar refrigerado. Eu também. Existe uma inteligência silenciosa nessa escolha. Ficar em casa não é rendição. É estratégia. É leitura sofisticada do mundo.


Os Chow Chow têm algo de zen-budista, como os gatos. Não balançam o rabo como a maioria dos caninos, não distribuem afetos genéricos, não performam simpatia. Só abanam o rabo quando querem. E para quem escolhem. Seus afetos são dirigidos, seletivos, quase filosóficos. Observam antes de agir. Avaliam antes de se entregar. Não pedem aprovação. Não negociam dignidade.


Sempre gostei dessa raça. Descobri, não por acaso, que eram os cães de Sigmund Freud. Talvez isso explique muita coisa. Talvez explique por que me reconheço neles. Nesse jeito fechado, atento, desconfiado, econômico nos gestos e nos afetos. Freud entendia de silêncios, de impulsos subterrâneos, de zonas sombrias da alma. Os Chow Chow também. Não abanam o rabo para agradar. Observam. Avaliam. Decidem se vale a pena. Freud, hoje, só Lexapro. E às vezes nem isso explica tudo.


Ontem, durante um passeio vespertino, quando o sol começa a fingir que vai embora, um homem surgiu do nada. Essas aparições são típicas do Rio. Olhou para os cães, fez uma pausa breve, quase teatral, e decretou com convicção absoluta: essa raça é psicopata. Concordei. Ele vestia uma camisa do Vasco. Não sei exatamente por que esse detalhe importa, mas importa. No Rio, nada é gratuito. Freud sempre tem razão. O Lexapro também.


Rimos. Cada um seguiu seu caminho. Fiquei pensando que há diagnósticos que dizem muito mais sobre quem fala do que sobre quem é observado. Os Chow Chow seguiram altivos, indiferentes ao julgamento humano, carregando uma dignidade arcaica. Talvez sejam psicopatas. Ou talvez sejam apenas honestos demais para um mundo que exige simpatia constante, sorriso obrigatório e cordialidade performática.


Em dias assim, a vida se recolhe. A cidade continua fervendo lá fora, mas dentro de casa o tempo muda de textura. A leitura vira abrigo. Os filmes pedem outro ritmo, mais lento, mais atento. As conversas por telefone, sim, ainda existem, se alongam como rituais de resistência contra a tirania da pressa. Falar ao telefone é quase um gesto político. É afirmar que a escuta ainda importa. Que a palavra dita ainda tem corpo. Que o silêncio entre frases também comunica.


A festa permanente do Rio talvez encontre sua tradução mais honesta na música de Fernanda Abreu, quando ela canta Rio 40 Graus e define a cidade como maravilha, purgatório da beleza e do caos. Não há verso mais preciso. O Rio é purgatório porque nunca se resolve. Não se salva nem se condena por inteiro. Não é inferno, porque oferece redenções diárias em forma de céu aberto, mar insistente, montanha vigilante. Não é paraíso, porque cobra caro cada distração. Vive nesse meio-termo incandescente, profundamente humano.


Minha paixão pelo Rio não é cega. Ela enxerga a violência, o abandono, as promessas quebradas, os erros repetidos com rigor quase científico. Ainda assim, ama. Ama porque esta cidade ensina a conviver com a contradição. Ensina que beleza não elimina dor. Ensina que alegria não é ausência de sofrimento, mas decisão cotidiana de permanecer, mesmo quando tudo parece demais.


Da janela da minha casa, protegido pelo conforto quase culpado do ar refrigerado, vejo o Cristo Redentor. Ele permanece ali, imóvel e atento. Observa o calor insuportável e as noites suaves. As festas improvisadas e os silêncios pesados. As pequenas felicidades e as grandes tragédias. Saúdo o Cristo menos como símbolo religioso e mais como metáfora de um Rio que insiste em acolher, mesmo ferido, mesmo cansado, mesmo injusto.


Não falarei aqui das jornalistas Renata Mendonça e Malu Gaspar, nem da atriz e ativista Brigitte Bardot. Não por desimportância. Mas exatamente pelo contrário. Elas estão em todas as páginas da imprensa, em todas as telas, em todas as redes sociais. São assuntos do mundo. Esta crônica pede outra escala. Pede cidade. Pede calor. Pede cães silenciosos. Pede encontros aleatórios na rua. Pede Freud, Hemingway, Fernanda Abreu e o Cristo que vigia.


O Rio dialoga com tudo. Absorve tudo. Reinterpreta tudo. Mas hoje o texto pede chão quente, ar pesado, suor, silêncio e pensamento. Pede memória e presente misturados como o ar quente que invade a sala quando alguém esquece a porta aberta.


O Rio de Janeiro segue em festa. Mesmo quando dói. Mesmo quando cansa. Mesmo quando parece excessivo. E eu sigo com ele, apaixonado e consciente, inteiro e contraditório, olhando para o Cristo que vigia, escutando ao longe a trilha sonora desse purgatório belo e caótico, certo de que não há lugar no mundo onde a vida pulse com tamanha intensidade.


E volto ao homem da camisa do Vasco. Porque certas cenas não pedem apenas registro. Pedem retorno. Ele surgiu do nada, lançou sua sentença canina com a segurança de quem não pede desculpas à dúvida e desapareceu logo depois, deixando no ar a palavra psicopata como quem solta um balão. Concordei de novo, em silêncio. Freud sempre tem razão. Ele nos ensinou que o estranho apenas revela o que não queremos admitir. O Lexapro, por sua vez, ajuda a manter o mundo minimamente habitável.


Entre a psicanálise e o remédio, entre o calor insuportável e o ar refrigerado, entre o caos e a beleza, sigo com meus Chow Chow, zen-budistas, seletivos, psicopatas ou não, vivendo no Rio de Janeiro. Essa festa permanente que nunca termina. E que nunca, jamais, se explica por completo.


Paulo Baía
Sociólogo, cientista político, ensaísta, flamenguista, portelense e professor.

Deixe um comentário

Leia mais:

Descubra mais sobre Geração 68

Inscreva-se agora mesmo para continuar lendo e receber atualizações.

Continue lendo