Jean Marc von der Weid, março de 2025
As primeiras políticas dirigidas ao público específico da agricultura familiar datam dos anos noventa, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. A própria definição deste público era imprecisa até meados daquela década, estando em voga a denominação de “pequenos produtores”, usada pelo movimento sindical dos trabalhadores rurais (CONTAG) e pelo movimento dos sem-terra (MST). Debates intensos nos movimentos sociais rurais levaram à introdução do conceito de agricultura familiar, herdado da sociologia francesa. Esta conceituação acabou adotada na legislação e na formulação de políticas públicas nos anos noventa.
A primeira política proposta pelo governo FHC foi o Programa de Apoio à Agricultura Familiar (PRONAF) que perdura até hoje, atravessando vários governos sem alterações significativas. Este programa tem como premissa um modelo de produção a ser adotado pelo público-alvo de agricultores familiares, modelo esse baseado nos conceitos da chamda “revolução verde”, adotado pelo agronegócio aqui e alhures pelo agronegócio. Os ideólogos do Pronaf imaginavam uma agricultura familiar como uma cópia diminuta das grandes propriedades. A base técnica seria semelhante: plantio de monoculturas, uso de sementes melhoradas por centros de pesquisa e empresas, fertilização química e controle de pragas e invasoras por agrotóxicos. Estes sistemas calcados inicialmente na pesquisa agropecuária convencional da Embrapa seriam também motomecanizados e (idealmente) irrigados.
Embora não tenha sido formulada formalmente na legislação ou nas políticas adotadas, a premissa básica que informou ambas era uma avaliação socioeconômica comum nos economistas de todas as ideologias: a agricultura familiar estava destinada a ocupar um pequeno nicho da economia rural, tal como se deu nos modelos “mais avançados” de desenvolvimento, em particular na América do Norte. O modelo da revolução verde favorecia os ganhos de escala na produção e cobrava altos custos de investimento. Ambos os fatores desfavoreciam a competitividade da agricultura familiar e impulsavam a sua desaparição, salvo em algumas culturas de difícil mecanização, como as hortaliças.
Nos cálculos dos formuladores das políticas, os quase cinco milhões de agricultores familiares existentes no final da década de oitenta estavam divididos entre três categorias: os modernizados e integrados ao mercado, os viáveis (entendidos como os que poderiam se incorporar no primeiro grupo) e os fadados ao desaparecimento.
Sem uma análise apontando os fatores que levavam às situações sociais e econômicas de cada subgrupo, considerava-se que o primeiro grupo seria o objeto mais importante das políticas, visando consolidar uma agricultura moderna empregada por mais ou menos 200 mil agricultores. Os “viáveis” eram avaliados em mais ou menos um milhão, dos quais esperava-se que pelo menos um terço poderia progredir e se integrar no primeiro grupo. Finalmente, cerca de 3,7 milhões, considerados inviáveis, deveriam ser tratados por políticas sociais mitigadoras da sua condição de marginais, esperando que a evolução da economia como um todo abrisse espaço para sua integração em outros espaços e empregos.
Idealmente, o futuro da agricultura familiar seria uma parcela de 2% do emprego de mão de obra, tal como ocorre nos Estados Unidos.
Origens da situação da agricultura familiar antes do PRONAF.
Desde a colônia portuguesa, o projeto de desenvolvimento adotado tinha uma matriz capitalista ou protocapitalista: o sistema de cultivo e transformação da cana em açúcar. O Brasil existe porque trabalhadores e capital financeiro foram investidos na exploração das terras da colônia para produzir uma comodity de exportação. Com o tempo, outras comodities foram adotadas, café, algodão, cacau, borracha e marcaram os ciclos da nossa economia enquanto duraram. A mão de obra empregada foi de tipo escravizado, no começo indígena e logo africana.
A produção alimentar ficou subordinada a este objetivo central da economia capitalista/mercantilista, fornecer produtos primários agrícolas aos mercados europeus. Os grandes latifúndios de qualquer destas comodities empregavam parte da sua mão de obra escrava para produzir alimentos para os trabalhadores das plantations.
A base alimentar foi a herdada das culturas indígenas, mandioca, milho, feijões, favas, etc. Por outro lado, os latifúndios expandiram a ocupação do espaço rural através da criação de gado bovino e muar, destinados ao transporte de cargas e à movimentação das moendas dos engenhos de açúcar. O semiárido nordestino foi desbravado por pastores trabalhando sob controle direto ou contratados pelos grandes produtores.
A agricultura familiar no Nordeste vai se formando nas margens das grandes propriedades, com cultivos alimentares dirigidos aos trabalhadores dos latifúndios, mas, sobretudo, para a crescente demanda dos núcleos urbanos. Mesmo nesta escala, o uso de mão de obra escravizada foi importante, suprindo ou complementando a da família.
O marco diferenciador deste processo histórico foi a cultura do algodão, também herdada dos indígenas e da existência de uma espécie de algodão de tipo arbóreo, endêmico do Brasil, conhecido pelo seu nome tupi de mocó. Sendo uma espécie altamente resistente ao estresse hídrico, o algodão mocó, com suas longas fibras resistentes, era muito valorizado nos mercados europeus.
O cultivo de algodão foi estimulado pelos senhores de terras, sem que assumissem a iniciativa de produzí-lo em sistemas de plantations, como na América do Norte. Sistemas de meação foram se generalizando, sendo que os agricultores familiares plantavam em terras dos latifúndios, entregavam metade da colheita de algodão (em casos mais duros, dois terços) e mais o direito de plantar culturas alimentares para subsistência.
Unidades de produção familiar fora dos latifúndios eram exceção à regra, mas foram crescendo pouco a pouco, em geral pelo desbravamento de terras virgens na direção do oeste. Este movimento desbravador foi sempre recuperado pelo latifúndio, que acabava por se apropriar das terras desbravadas e empurrando os que não queriam se submeter mais para o interior. Esta lógica se manteve até os anos sessenta.
O primeiro grande marco de política afetando o nosso mundo rural foi a Lei Áurea, de 1988, que deu cabo de séculos de escravatura no país, liberando aproximadamente um milhão de pessoas da servidão. Sem que houvesse qualquer compensação por décadas de trabalho gratuito os libertos se viram de um dia para o outro nas estradas das zonas rurais, sem emprego, moradia ou alimentação. Uma parcela voltou às fazendas onde trabalhavam, submetidos a condições duríssimas de trabalho pelos antigos donos. Outros marcharam para oeste em busca de terra para plantar e a maioria foi para as cidades, empregando-se nos trabalhos mais duros e mal pagos. Uma parte considerável da agricultura familiar do Brasil deriva deste contingente de ex-escravizados, incluindo os que tinham buscado a liberdade antes da Lei Áurea e formado as comunidades rurais negras conhecidas como quilombos.
Na região nordeste os escravizados estavam situados sobretudo na Zona da Mata, trabalhando nas plantations de cana de açúcar. No sertão prevalecia o trabalho livre, quer nos latifúndios (“moradores”) quer nos pequenos espaços da agricultura familiar.
No semiárido controlado pelos grandes criadores de gado os movimentos das grandes massas desvalidas foram sempre definidos por pressões da natureza, em particular as secas que a cada 50 anos, em média, arrasavam agricultura e criações dos produtores familiares. As “grandes secas” ficaram na história, começando com a pior delas (do ponto de vista do impacto), a dos anos cinquenta do século dezenove que (estima-se) matou metade da população do sertão nordestino. A cada manifestação mais aguda de seca a reação de sobrevivência foi a migração, gerando um fenômeno de massa de centenas de milhares dos chamados “retirantes” ou “flagelados”, indo buscar trabalho nas zonas rurais do sudeste e sul ou na exploração da borracha na Amazônia, ou ainda na construção civil que explodiu nas grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo no pós-guerra.
Mas as grandes migrações que se deram a partir dos anos cinquenta do último século tiveram início com a construção de Brasília. A atração dos trabalhadores nordestinos (conhecidos como candangos) para os grandes projetos federais de construção civil (estradas, barragens) prosseguiu nas décadas seguintes. Quer por atração (emprego) ou por expulsão (secas) o mundo rural brasileiro encolheu entre os censos de 50 e 70 em perto de 30 milhões de pessoas. Nem todos eram nordestinos, é claro, mas uma boa parte provinha sobretudo dos sertões do semiárido.
O mundo rural brasileiro já estava em transformação, sobretudo nas regiões sul e sudeste. Estimulada pelo governo imperial, a imigração de camponeses europeus (e no começo do século XX, japoneses) vinha num crescendo desde a metade do século XIX, à raiz da crise agrária europeia. Calcula-se que perto de dois milhões de imigrantes chegaram ao Brasil em pouco mais de 50 anos, substituindo o tráfego de escravizados, estancado pela força do Império Britânico. Muitos foram trabalhar nas fazendas de café, mas outros foram encontrando terras para produzir, trazendo novas culturas para o sul, como uva, trigo, cevada, frutas temperadas. Foram a base do setor mais modernizado da agricultura familiar brasileira, talvez porque a crise do latifúndio gaúcho tenha dado espaços que não se encontraram no resto do país.
A luta por terras no Brasil sempre esteve presente, desde a formação dos quilombos no tempo da escravatura até a formação de comunidades independentes como Canudos, Caldeirão, Contestado e muitas outras menos conhecidas, na virada do século até os anos trinta. É uma história de massacres e derrotas, mas que se repetiu, adquirindo dimensão política em meados dos anos cinquenta, com a criação das Ligas Camponesas.
O movimento político pela reforma agrária foi um dos polarizadores que levou as classes dominantes a mobilizar as Forças Armadas no golpe de 1964. O latifúndio esteve à frente da mobilização reacionária e esmagou o movimento camponês brutalmente, nos meses em que o exército “limpou” as áreas rurais de sindicalistas, religiosos, educadores, agentes sociais e ativistas políticos.
De forma aparentemente contraditória, os militares adotaram uma política pública dirigida ao mundo rural, o Estatuto do Trabalhador Rural. Para horror dos latifundiários, o Estatuto tinha muitas cláusulas favoráveis aos direitos dos assalariados, meeiros, moradores e outras categorias de agricultores familiares.
A lógica dos militares era político-militar. Formados nas escolas das forças armadas americanas, nossos estrategistas se preocupavam com a possibilidade da implantação de guerrilhas rurais no Brasil, com base nos exemplos do Vietnam e de Cuba e pretendiam fazer concessões aos camponeses para evitar que viessem a ser catequizados pelos comunistas.
A reação dos latifundiários foi radical: para não fazer concessões aos seus diferentes tipos de empregados, sobretudo os moradores e meeiros, eles simplesmente os eliminaram. Entre os censos de 1960 e 1970 estas duas categorias quase desaparecem das estatísticas. Milhões de pessoas perderam seus meios de produzir e sua habitação, indo buscá-las na migração para o “sul” ou ocupando terras “devolutas”, como eram chamadas as terras sem proprietário conhecido.
O emprego rural no nordeste foi se desenhando em novas formas, com os agricultores familiares do sertão passando a migrar periodicamente para a zona da Mata para trabalhar nas colheitas de cana, cacau e, mais tarde, coco e dendê. O mesmo movimento migratório sazonal também ocupou trabalhadores familiares nas zonas irrigadas do São Francisco, na Bahia ou Pernambuco, colhendo frutas. O trabalho intermitente nas cidades do sul/sudeste e, mais recentemente, Brasília continuou atraindo chefes de família enquanto suas esposas tocavam a propriedade na sua ausência.
Esta história rural teve como resultante o perfil atual da agricultura familiar no Brasil. Como resultado do domínio do latifúndio e, hoje, do agronegócio, a agricultura familiar foi empurrada para os biomas mais vulneráveis, para regiões de difícil acesso, para as terras mais pobres ou desgastadas, para os relevos mais declivosos. Além de marginalizados nas condições ambientais, os agricultores familiares têm, de modo geral, pouca terra. Dos cerca de 3,8 milhões de famílias agricultoras recenseadas em 2017, perto de 2,250 milhões tinham menos do que um módulo rural em suas propriedades, sendo que perto de um milhão tinha menos de dois hectares. Uma parte significativa destas famílias (estimada em 1,5 milhão) vive no semiárido nordestino. A grande maioria destes agricultores depende de ajudas sociais do governo federal para sobreviver, embora em estado de pobreza e de miséria.
Este público, majoritário entre os agricultores familiares, não tem acesso a qualquer política produtiva dos governos federal e estaduais. Seus ingressos dependem de trabalho fora da propriedade, além das ajudas sociais como Bolsa Família ou Benefício de Prestação Continuada e aposentadorias. Pequenos quintais produtivos e um ou outro animal de criação complementam os ingressos e a subsistência.
Uma outra parcela, contando aproximadamente com 1,150 milhão de famílias, tem pouca terra, desgastada e em ecossistemas vulneráveis, mas são um pouco mais bem aquinhoados e retiram parte maior do sustento da produção agrícola e criações, muito para subsistência, mas também para mercados locais ou municipais. A grande maioria também não acessa as políticas de crédito, de ATER ou de compras públicas (PAA, PNAE, outras estaduais) e parte recebe ajudas sociais.
A terceira parcela é composta pelos “integrados” ou modernizados e não alcança mais do que 350 a 400 mil famílias. Estes são o alvo privilegiado das políticas federais e estaduais que tentam incentivar o desenvolvimento da agricultura familiar. Estão fortemente concentrados no Sul e no Sudeste e uma boa parte trabalha em sistema de contrato com frigoríficos de frangos e suínos, laticínios, vinhas, tabaco, erva mate.
Efeito das políticas públicas no desenvolvimento da agricultura familiar.
Em primeiro lugar, é preciso ter claro que a política de promoção do desenvolvimento da agricultura familiar iniciada no governo de FHC, o PRONAF, não foi modificada significativamente tanto nos governos populares (Lula I e II e Dilma I e I,3) quanto na reação de direita de Temer e Bolsonaro. O centro da estratégia continuou sendo o crédito facilitado para a compra de insumos químicos, sementes e maquinário.
Lula agregou ao crédito o seguro do empréstimo bancário e o programa de aquisição de alimentos (PAA), expandiu as compras de produtos da agricultura familiar no programa de alimentação escolar (PNAE) e ampliou os recursos para financiar a assistência técnica e a extensão rural (ATER).
Mas enquanto o crédito subsidiado e facilitado beneficiou um máximo de 400 mil agricultores familiares (AF) nos governos de FHC e 2,1 milhão nos governos Lula e Dilma, o PAA nunca chegou a beneficiar mais do que 300 mil AFs e a ATER pouco mais do que 100 mil.
O centro da política era e ainda é o crédito e se supõe que os tomadores de empréstimos sabem o que fazer com os recursos financeiros ou tem acesso a assessoria técnica. Isto é verdade no caso dos produtores do Sul; metade deles tem acesso a ATER dos governos estaduais, de cooperativas, de empresas integradoras ou de empresas de venda de insumos. No resto do país a parte da agricultura familiar beneficiando de algum tipo de assistência técnica ficou em 15%.
Os governos populares expandiram bastante a base dos AFs com acesso ao crédito, 1,5 milhão do Nordeste e do Norte tiveram acesso ao PRONAF em algum momento. Estes números recuaram bastante nos governos da direita e não voltaram aos níveis anteriores no governo Lula III. Hoje o crédito é acessado por cerca de 1,5 milhão em todo o Brasil, um terço no Sul. Entretanto, dois terços de todo o recurso despendido no PRONAF foi dirigido para o Sul do país, que tem menos beneficiários, mas cujos projetos têm custos muito mais elevados.
No Sul, Sudeste e Centro-oeste os projetos se dirigem sobretudo para a compra de insumos ou maquinário. Já no Nordeste os projetos estão voltados para a criação animal, sobretudo gado bovino e os gastos são quase inteiramente de investimento em infraestruturas e cercas.
Os governos populares investiram bem modicamente na reforma agrária, ampliando esforços ainda mais modestos dos governos de FHC. Foram assentadas cerca de 68 mil famílias por ano entre 1995 e 2002, com muita pressão dos movimentos sociais. Entre 2003 e 2010 Lula assentou, em média, 77 mil famílias e Dilma, entre 2011 e 2016, assentou em média 24 mil. Os números dos governos Temer e Bolsonaro são desprezíveis.
Os dados disponíveis para assentados e para o número total de AFs são os dos censos de 2006 e de 2017. Neste intervalo foram assentadas (em números redondos), cerca de 500 mil famílias. Por outro lado, o número total dos agricultores familiares caiu 470 mil famílias. Isto significa que, apesar do meio milhão de assentados, saíram do campo cerca de 970 mil famílias.
A distribuição geográfica destas famílias permite dizer que as duas grandes frentes de evasão do campo foram a região Sul (185 mil) e a região Nordeste (350 mil). Embora existam várias outras razões para estas evasões, pode-se dizer que o endividamento e a insolvência dos tomadores de crédito foram importantes (sobretudo na região sul), já que a partir do ano de 2005 a principal reivindicação dos movimentos sociais nas suas negociações com o governo federal foi a anistia das dívidas da agricultura familiar. Na região nordeste a evasão teve também impulso pelo envelhecimento dos produtores, pela migração dos jovens e pela pressão das condições ambientais.
Apesar dos impactos negativos do crédito e, secundariamente, das outras políticas, pode-se dizer que o objetivo inicial que orientou estas políticas foi bem-sucedido. Os principais beneficiários do crédito, majoritariamente, consolidaram suas propriedades modernizadas e, no dizer do povo, “enricaram”, sobretudo no Sul. Na região nordeste também encontramos esta diferenciação de resultados, com uma minoria significativa entre os beneficiários estruturando-se como criadores de gado, uma minoria importante abandonando a produção e uma maioria com resultados incertos e endividados. A imensa maioria da agricultura familiar ficou à margem das políticas.
O que dizer, neste quadro, sobre as políticas voltadas para a promoção da agricultura ecológica ou a orgânica?
Desde os primeiros meses do governo Lula as ações de movimentos da sociedade civil tiveram influência sobre as políticas públicas adotadas para a agricultura familiar. Os movimentos sociais, até o governo de Dilma, não fizeram mais do que discutir a amplitude dos recursos e a amplitude das facilidades concedidas a todas as políticas definidas pela equipe do governo, sem questionar a orientação do uso dos recursos. Os movimentos sociais, conscientemente ou não, sancionaram a promoção do modelo do agronegócio e favoreceram a sua adoção pelos que ficaram conhecidos como agronegocinho.
Os movimentos de ATER agroecológica organizados na recém-criada Articulação Nacional de Agroecologia (ANA, em 2002) fizeram uma aliança com técnicos do DATER/SAF/MDA na organização da primeira conferência de ATER e definiram um programa de ATER totalmente voltado para a agroecologia. Foi uma ilusão (a primeira de muitas), já que na realidade da administração do MDA esta posição era minoritária. Ficamos anos com uma definição formal da PNATER apoiando a agroecologia convivendo com políticas reais divergentes, apoiando a agricultura convencional. Este quadro prosseguiu mesmo depois da segunda conferência de ATER, já no governo Dilma e que foi muito mais longe no aprofundamento da vocação agroecológica inscrita na PNATER.
No frigir dos ovos, pode-se dizer que todos os anos de embates do movimento agroecológico no MDA propiciaram a formulação e execução de apenas duas chamadas para projetos de ATER, em 2014 e 2015: a chamada de sustentabilidade e a chamada de agroecologia. Mais ou menos uns 50 milhões de reais em quinze anos. E mais ou menos uns 20 mil AFs assistidos.
O pior deste processo é que o formato adotado nas chamadas para financiamento de projetos de ATER (a Sustentável e a Agroecológica) foi uma derrota total para as ONGs de ATER agroecológica. As metodologias participativas utilizadas por estas entidades para promover a adoção da agroecologia tornaram-se inviáveis com as imposições normativas das chamadas. As entidades que insistiram em executar os projetos foram empurradas para metodologias convencionais e ineficientes, resultando em atrasos ou fiascos nos processos de desenvolvimento em curso. Muitas desistiram dos recursos.
Os movimentos pela agroecologia foram engrossados pela adesão da Via Campesina ainda no segundo governo Lula, mas esta posição teve pouco efeito nas negociações com o governo. O mesmo pode ser dito dos dois outros movimentos, a CONTAG e a CONTRAF.
Todos os integrantes da ANA (inclusive os movimentos sociais) concentraram esforços em formular um amplo programa de promoção da agroecologia em todas as suas dimensões, tanto conceituais como políticas e administrativas. Depois de quase três anos de intensas discussões a ANA apresentou e o governo Dilma aprovou a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, PNAPO, seguido da elaboração e aprovação do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PLANAPO).
Apesar do esforço, o resultado foi praticamente nulo, já que todas as propostas tinham que ser detalhadas e aprovadas em distintos ministérios e departamentos e convertidas em projetos com orçamentos específicos. Dilma caiu antes disto acontecer, mas creio que a possibilidade daquelas disposições se transformarem em atos concretos de mudança me parece difícil, dadas as dificuldades da experiência muito mais focada e objetiva com a política de ATER.
Para resumir, não há muito o que falar sobre as políticas voltadas para a agroecologia nos governos populares por elas terem sido ao mesmo tempo muito limitadas e muito mal concebidas para poderem ter algum efeito significativo, mesmo como exemplo demonstrativo.
As políticas públicas para a agricultura familiar no governo Lula III.
Neste governo a grande mudança apareceu na definição de objetivos na etapa de transição no final de 2022. O novo MDA passou a definir seus objetivos como os da promoção da agroecologia! A nova linguagem, entretanto, não teve qualquer incidência nas ações práticas do ministério.
O MDA retomou as mesmas políticas dos governos passados com os mesmos vícios e defeitos, com prioridade para o crédito orientado para o setor modernizado da região Sul e os neocriadores de gado do Nordeste. Mais ainda que nos governos anteriores, a parcela do orçamento dirigida para este crédito e este público ocupa 80% dos recursos disponíveis para os gastos finalísticos. Não há nenhuma orientação ou preferência para um uso do crédito voltado para a agroecologia e talvez isto seja uma benção pois este governo ignora totalmente os condicionantes da agroecologia para operações de financiamento e os riscos de desastre ou fiasco nos acessos seriam grandes.
A única iniciativa nova adotada foi o programa de Quintais Produtivos, muito embora este tenha sido tão mal formulado a ponto de estar condenado ao desastre. Este programa tem o potencial de beneficiar a camada mais empobrecida da AF, os minifundistas do semiárido, sobretudo as mulheres. Mas seria preciso redefinir praticamente todo o programa e multiplicar seu orçamento por 5 apenas para atingir o público de 90 mil quintais estimado pelo governo, e que representa menos de 4% do público potencial.
Quanto ao MDA, pode-se dizer que o ministro não sabe o que fazer e isto não incomoda o governo porque quem não sabe o que fazer não gasta recursos de um orçamento muito baixo. Não há o que se esperar para a agroecologia neste governo.
Um dos programas mais bem avaliados nos governos populares anteriores, o Programa de Aquisição de Alimentos, teve dimensões bastante diminutas. No seu auge, em 2012, investiu cerca de 840 milhões de reais (valor corrente naquele ano, não corrigido) e beneficiou apenas 140 mil agricultores familiares, ou perto de 4% do total. Em 2023, no primeiro ano deste governo Lula III, foram 77 mil agricultores beneficiários do PAA, com um investimento de 1,1 bilhão de reais. Aumentou o valor do financiamento de cada família fornecedora de alimentos, mas em termos de valor atualizado o progresso foi pequeno. Em termos sociais, surgiu uma concentração maior dos projetos em menos beneficiários. Do ponto de vista do apoio à agroecologia, é preciso constatar que menos de 8 mil agricultores familiares forneceram produtos orgânicos ou agroecológicos.
A maior parte do orçamento do PAA é coberto pelo Ministério do Desenvolvimento Social, embora o PAA esteja vinculado ao MDA.
Quanto ao PNAE, não se sabe quantos foram os agricultores familiares que acessaram a possibilidade de fornecer alimentos para a merenda escolar e muito menos quantos ofereceram produtos orgânicos ou agroecológicos. Por experiencia própria, posso dizer que tirando os municípios menores, onde os gestores das escolas conhecem os fornecedores de alimentos e as distancias são relativamente pequenas, os entraves para as compras de produtos da agricultura familiar são enormes, mesmo sem a prioridade para os produtos agroecológicos ou orgânicos.
Sem a organização de uma oferta de alimentos estruturada e sistemática, envolvendo a coleta e entrega coletivas, nenhum gestor de escola vai se meter a procurar os agricultores familiares um por um e contratar entregas em volumes e datas fixas. Quanto maior a demanda de cada colégio mais complexa fica a operação e mais difícil a sua legalização. Estes limitante ficam ainda mais agudos para as compras de alimentos para a merenda dos colégios nos centros urbanos. Para ganhar tempo e evitar riscos da fiscalização todo gerente vai preferir comprar alimentos nos mercados institucionais, no atacado ou no varejo.
Para explorar a oportunidade criada pelas regras do PNAE e, em parte, as do PAA, seria preciso um movimento de organização cooperativa de produtores que pudesse atender as condições de entrega de produtos em quantidade, qualidade e temporalidade em cada município e cada escola. Sem isso, a lei fica letra morta ou tomada por intermediários não necessariamente vinculados aos produtores. Estas observações valem para projetos de mesma natureza de governos estaduais, embora seja necessário analisar cada caso.
Conclusões:
Todos os governos federais desde os anos noventa adotaram essencialmente a mesma política de promoção do desenvolvimento da agricultura familiar, centrada no crédito bancário para financiar insumos químicos sementes e maquinário no Sul e Sudeste, ou para financiar as infraestruturas necessárias para a criação de gado bovino no Nordeste.
A grande maioria dos agricultores familiares, sobretudo os mais pobres, ficou à margem das políticas públicas de desenvolvimento, sendo apenas beneficiados pelas políticas sociais.
O impacto destas políticas foi o enriquecimento de uma minoria da AFs, o abandono do mundo rural por quase um milhão de AFs, e a manutenção da maioria na condição de penúria e miséria.
A agroecologia foi adotada na linguagem do governo, mas não na realidade da orientação das políticas públicas federais.
Políticas públicas estaduais e municipais.
Durante os mais 40 anos de atividades do movimento agroecológico, desde 1980, as campanhas por políticas públicas em apoio à transição por uma agricultura sustentável estiveram focadas na esfera federal. Com o golpe que derrubou o governo da presidente Dilma Rousseff e o desmonte das políticas conquistadas, foi preciso mudar o foco das reivindicações, centrando-o nas políticas estaduais e municipais.
Tudo começou de forma espontânea, com as bases territoriais de organizações da sociedade civil buscando novos espaços de interrelação com os poderes públicos locais. Às vésperas das eleições municipais de 2020 a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) fez um levantamento destas campanhas e identificou mais de 700 políticas públicas deliberadas em 531 municípios. Os temas abrangeram a recuperação de sementes de variedades crioulas, fomento à produção e apoio a grupos produtivos de mulheres, processamento (legislação sanitária, estruturação de espaços de armazenamento e de beneficiamento de alimentos), distribuição (apoio a feiras municipais e locais, compras institucionais) e descarte (sistemas ecológicos de saneamento, coleta de resíduos e compostagem).
Esta base de iniciativas locais serviu como referência para a elaboração de uma carta compromisso modelo, intitulada Políticas de Futuro que buscou a adesão de candidaturas em todos os estados. Foram 1238 assinaturas, com 14,4% de compromissados eleitos.
Após as eleições a ANA mobilizou as bases para traduzir estas propostas em políticas concretas, com foco em 39 municípios em 26 estados. Destes esforços resultou a criação de 10 Planos Municipais de Agroecologia, votados nas câmaras de vereadores.
Em 2022 esta iniciativa se repetiu na escala dos Estados, com cobertura em todos eles e no Distrito Federal. Foram identificadas 487 políticas estaduais, mas não consegui obter a distribuição nas diferentes unidades da Federação, nem a identificação dos temas mais importantes. Quero crer que os temas não diferem dos que marcaram o levantamento de políticas municipais e, por outras fontes, acredito que os temas das sementes crioulas e do fomento da produção estão entre as de maior destaque.
A ANA não conseguiu, ainda, avaliar o quanto destes compromissos foi transformado em ação pública concreta. Outras fontes, muito parciais, de informação apontam para programas de certa envergadura em apoio à produção agroecológica nos Estados da Bahia, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.
Nos Estados da Paraíba e Rio Grande do Norte os programas de maior peso se vincularam com o projeto da Diaconia, intitulando-se Algodão Orgânico Paraibano e Algodão Orgânico Potiguar. Nestes Estados os governos pegaram carona nos processos em curso de promoção da produção de algodão orgânico e buscaram ampliá-los levando-os para as bases de atuação das Empresas Estaduais de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER). Existem links com a iniciativa coordenada pela Diaconia, sobretudo na adoção do modelo técnico e na relação com os compradores, mas quero crer que as experiências correm em paralelo.
Assim como no caso das políticas públicas federais, já comentado acima, estes avanços nas políticas públicas estaduais e municipais tendem a ficar perdidas por problemas de execução. Tal como na esfera federal, existe uma incompreensão dos agentes públicos no que se refere aos princípios da agroecologia e aos conhecimentos técnicos e metodológicos dos agentes executores.
Tanto no caso da Paraíba como no do Rio Grande do Norte, a fragilidade técnica e metodológica dos agentes de ATER governamentais foram identificados pelas empresas compradoras, resultando em dificuldades nos fluxos de produção certificada. Segundo uma delas, entre os mil e tantos produtores familiares assistidos pelo estado potiguar em apenas um município a oferta de algodão manteve estabilidade na quantidade e qualidade do produto, muito embora este município concentre uma boa parte dos participantes do programa. Já na Paraíba a queixa dirigiu-se a ingerências político eleitorais no programa, com promessas de pagamento acima do que o mercado estava disposto a assumir.
Sem maior conhecimento do que vem ocorrendo nos programas governamentais não posso avalizar estas observações, mas a experiencia pregressa indica que deve haver algum nível de razão nas críticas.
Ao que pude perceber, os programas governamentais em qualquer nível padecem dos mesmos defeitos, o de querer ampliar muito rapidamente a escala de participação dos agricultores familiares, o de carecer de assistência técnica qualificada em qualidade e quantidade e o de ignorar as peculiaridades da diversidade de situações entre os produtores.
De toda forma, este conjunto aparentemente significativo de iniciativas parece resultar em uma resposta positiva dos poderes públicos frente às campanhas da sociedade civil, mas a precária base conceitual dos agentes governamentais pode resultar em muitos problemas práticos e em eventuais fiascos. Não se pode esquecer a maior experiencia de promoção estatal da agroecologia, ocorrida há poucos anos no Sri Lanka. Um novo governo decidiu converter toda a produção do país para a agroecologia, através de normativas nacionais e deu com os burros n’água em pouco tempo, resultando no abandono da proposta.
Um dos entraves mais importantes para o aumento de escala da produção agroecológica segue sendo a formação técnica e metodológica de profissionais das ciências agrárias e isto não se resolve por decreto, seja ele municipal, estadual ou federal.
As experiências de desenvolvimento agroecológico ou orgânico se dão, na maior parte dos casos, sem o apoio das políticas públicas federais ou estaduais. O seu sucesso e os seus problemas não são o objeto deste trabalho, mas é preciso constatar que faz muita falta uma avaliação geral do que foi acumulado como sucesso e como fracasso nos últimos 40 anos. Analisar as causas de uns e de outros resultados é essencial para poder avançar e influenciar as políticas públicas.
É necessário abrir uma discussão sobre os caminhos mais amplos para a agricultura familiar nas diferentes regiões do Brasil, mas em particular na região Nordeste, que concentra a maioria dos AFs e a maioria dos mais pobres e miseráveis. Este debate deverá levar em conta uma projeção das condições ambientais que vão afetar as diferentes regiões e discutir o que vai ser possível fazer para enfrentá-las.
O que faz falta para definir políticas públicas.
Sem um projeto de país e de sociedade a formulação das políticas fica ao sabor dos interesses de uma ou outra classe ou categoria social, ou ainda de particularismos, ao sabor das pressões dos lobistas e do jogo de poder dos partidos. É o nosso presente caso no Brasil e tem sido assim há muito tempo.
Sem pretender responder a todos os elementos de um projeto nacional, vou indicar algumas ideias força para maiores reflexões no futuro.
Em primeiro lugar é preciso saber qual o lugar da agricultura na construção de um futuro sustentável para o Brasil. Tirando a questão da sustentabilidade, os formuladores da política para os AFs nos anos noventa tinham um projeto de sociedade, na verdade uma cópia do modelo americano. Para eles, a agricultura familiar seria um nicho pequeno em um mercado de produtos agrícolas totalmente dominado pelo agronegócio. Reparem que o papel principal atribuído à agricultura pelos neoliberais de FHC era garantir o balanço de pagamentos do país mantendo um superavit junto com as exportações de minérios. A produção para o abastecimento interno nunca foi objeto de programas específicos, deixando-se o abastecimento local à mercê dos mercados.
Não é, certamente, isto que queremos para o Brasil.
O papel da agricultura e dos agricultores é, ou deverá ser, muito mais amplo e complexo do que imaginaram os neoliberais. Em primeiro lugar, o objetivo central da agricultura deve ser o de garantir uma alimentação correta em qualidade nutricional e em quantidade para toda a população.
Centrar no abastecimento interno tem a ver com uma análise da crise energética que vai se abater sobre o planeta e que deverá tornar o transporte de bens e pessoas muito mais caro do que hoje e obrigar a uma desglobalização. As economias de energia deverão obrigar uma relocalização da produção agrícola, limitando muito o comércio internacional e até interno em países da dimensão do Brasil.
Reduzir a milhagem viajada pelos produtos alimentares colocados no mercado significa diversificar ao máximo a produção em cada bioma e ecossistema. Isto significa, por exemplo, repensar o consumo diário do pão, elemento central de todas as dietas. Não sendo o trigo uma cultura adaptável em todos os nossos biomas, deveria ser reduzido o consumo do “pãozinho francês” ao Rio Grande do Sul ou ao Sul.
No resto do país teríamos como escolhas a volta da broa de milho (que já foi dominante até os anos cinquenta) ou da tapioca (de mandioca). Existem outras espécies agrícolas apropriadas para biomas e ecossistemas que podem produzir substitutos nutritivos e saborosos para o pão de trigo (ou de centeio), algumas nativas e outras exóticas como o amaranto ou a quinoa. O essencial a se apreender neste ponto é a necessidade de uma nova orientação na dieta e na produção de alimentos de modo a reduzir o investimento em transporte.
A esta nova orientação se agrega a necessidade de se produzir de forma sustentável os alimentos destas novas dietas diversificadas e regionalizadas. A agroecologia é um paradigma de produção que trabalha com a máxima diversidade dos sistemas de cultivo e com a máxima adaptação de espécies e variedades às condições ambientais locais. A sua maior utilização de espécies e variedades no desenho dos sistemas produtivos combina com a oferta diversificada de alimentos para uma demanda que deverá ser mais local, territorial e microrregional.
A agroecologia tem grande economia no uso de energia em comparação com os sistemas convencionais, mas tem baixa produtividade do trabalho na comparação com estes mesmos sistemas. Isto implica que a agricultura terá que se centrar na produção familiar em escala de baixa motomecanização, sempre no sentido de poupar energia (mesmo que eletricidade produzida por ventos ou sol).
Para suprir as necessidades alimentares e outras de origem agropecuária de forma sustentável serão necessárias (estimativas do autor) cerca de 30 milhões de famílias produtoras dispondo de 10 hectares em média para cultivos e criações. Isto permitirá a recuperação de centenas de milhões de hectares de terras degradadas e florestas parcialmente desmatadas e queimadas. A recuperação e manutenção das matas brasileiras deverá ocupar permanentemente mais 5 milhões de famílias.
A realocação de 35 milhões de famílias vai ser uma necessidade vital para a sobrevivência da sociedade brasileira e ela vai necessitar um apoio de pelo menos outras 15 milhões de famílias que se ocuparão da transformação de produtos, do mercado, dos serviços, da construção civil, da educação, da saúde e do lazer em um espaço rural muito mais ocupado do que hoje. Os espaços administrativos terão que ser redimensionados (e muito diminuídos) e se tornarão mais importantes neste novo mundo do que os espaços nacionais e estaduais.
Não é demais lembrar que este modelo de produção e de consumo terá enorme impacto na redução e eliminação das emissões de gases de efeito estufa, aliviando e estancando o processo de aquecimento global hoje em curso acelerado. A mudança na cobertura vegetal promovida pelo modelo agroecológico e pela recuperação das matas nativas vai minimizar a variabilidade da oferta hídrica provocada pelo aquecimento global.
No entanto, precisamos entender que o abastecimento de água não pode seguir o modelo predatório e insustentável do presente. Tanto nas áreas rurais quanto nas urbanas um vasto processo de construção de infraestruturas de pequeno porte de captação, estocagem e conservação de água de chuva deverá reduzir a demanda dos grandes rios e permitir a recuperação das bacias hidrográficas. Simultaneamente, os serviços de saneamento deverão acompanhar a estratégia de descentralização, gerando um máximo de tratamento local de lixo e de esgoto, diminuindo as emissões de GEE, reaproveitando a água e produzindo composto orgânico para uso na agricultura. Isto poderá resolver um dos maiores problemas da manutenção da fertilidade dos solos cultivados, ampliando em muito o nível de sustentabilidade da produção.
Poderíamos e deveríamos prosseguir discutindo a geração de energia sustentável para substituir os combustíveis fósseis. Por outro lado, não podemos cair na ilusão de que basta trocar um pelo outro. Não vai haver energia em quantidade suficiente para substituir gasolina e diesel ou carvão e gás. Por isto a importância da relocalização da produção e o encurtamento dos trajetos entre produção e consumo. Isto significa descentralizar a população e diminuir muito as cidades, sobretudo as grandes metrópoles. Vai ser preciso descentralizar a oferta de energia e multiplicar o uso local de painéis solares ou moinhos de vento, abandonando as mega fazendas de vento e de sol. A produção descentralizada é notavelmente mais rentável do que a concentrada, sobretudo pelos custos e perdas energéticas na distribuição de eletricidade produzida de forma concentrada.
O transporte deverá ser o mais racional possível na economia energética e isto elimina o sacrossanto automóvel de uso individual. Os modais de transporte deverão abandonar ao máximo o uso de estradas pelo de hidrovias, cabotagem, trens e metros (nas cidades). O transporte aéreo será necessariamente muito diminuído e dirigido a prioridades sociais essenciais. Vai ser um mundo muito menos conectado diretamente pelo fluxo de pessoas, sobretudo entre os continentes.
Entrando mais em questões específicas, fica a pergunta sobre qual a vocação da agropecuária nordestina, particularmente a do semiárido. Na lógica do liberalismo a agricultura nos sertões está condenada e cerca de 10 milhões de pessoas deveriam emigrar para outro lugar, deixando as áreas para exploração de minerais, para fazendas eólicas ou solares, e para a criação de gado bovino, algo que faz parte da ocupação histórica destes rincões.
É claro que a solução de retirar a população é sempre um choque, mas o capitalismo nunca hesitou em aplicar soluções drásticas. O que é real e tem que ser levado em conta é que as terras estão muito desgastadas, que irregularidade das chuvas é cada vez maior e que 1,5 milhões de AFs que vivem na região estão e sempre estiveram na miséria. ¿O que propor para eles?
Guimarães Duque, entre outros ilustres estudiosos do bioma caatinga, do clima semiárido e do potencial produtivo da região indicaram há muito tempo que a vocação dos sertões nordestinos era a criação de gado bovino e, sobretudo, caprino e ovino. Pesquisadores da Embrapa Caprinos em Sobral desenvolveram propostas de manejo da caatinga que permitem dobrar a carga animal de caprinos, de forma sustentável e mantendo a vegetação nativa. Outros estudiosos mostraram que se pode manejar as plantas xerófilas da caatinga de modo a fornecer forragem farta mesmo nos períodos de seca, para qualquer tipo de gado.
Os estudos em questão não enfrentaram o problema da oferta hídrica para os rebanhos. Isto foi feito em outra linha, desde os tempos do império, com a política de “combate à seca” através da construção de barragens e açudes de tamanhos muito variados. Todos os rios perenes do Nordeste estão barrados em vários pontos e até os temporários o são também. O excesso gerou um problema generalizado de salinização dos corpos d’água pelo fato do volume circulante ser insuficiente para sangrar as barragens.
Os grandes criadores de gado bovino nunca tiveram problemas maiores com falta de água para o rebanho beber já que em suas imensas terras sempre era possível construir infraestruturas de retenção e/ou captação de água. Só nas super secas ocorreram perdas muito elevadas por morte de sede ou fome. Os rebanhos dos latifundiários sofriam e emagreciam, abortavam crias ou adoeciam por efeito das grandes secas, mas os pequenos criadores de caprinos podiam, muitas vezes, perder tudo. Acesso a reservas de água é e sempre foi uma questão estratégica para todos os produtores, com consequências trágicas para quem não o tem.
O futuro da agricultura familiar no sertão vai ter que passar por sistemas diversificados, típicos da agroecologia, mas com algumas especificidades.
Em primeiro lugar, vai ser preciso oferecer infraestruturas de captação de recursos hídricos de forma também diversificada, com cisternas de placas para consumo da casa, barreiros trincheira para animais beberem, cisternas calçadão e barragens subterrâneas para quintais de autoabastecimento e pequenos excedentes para os mercados locais. Sistemas irrigados estes modelos independem da regularidade das chuvas e sim do volume total chovido. Um ano seco que entregue 400 mm de chuva captado nas diferentes estruturas citadas permite atravessar o ano sem perdas maiores.
As infraestruturas citadas e outras de pequeno porte permitem manter entre 1,5 e 2,5 hectares “molhados” ao longo do ano e garantem uma alimentação em hortas, pequenos roçados e pomares para uma família de até 5 pessoas com vendas de excedentes aos mercados locais e de vizinhança. Isto permite a estas famílias sair da miséria e garantir a alimentação, mas não lhes dá promessas de uma vida mais digna, mesmo na suposição de um consumo total dentro do essencial. Qual seria a fonte de renda maior, qual seria o produto de mercado?
Não há um produto único, mas o critério seria um produto vegetal ou animal resistente à seca.
No caso dos animais a resposta seria a criação de ovinos deslanados ou caprinos e existem várias raças bem adaptadas tanto ao stress hídrico quanto à alimentação rústica, as pastagens nativas da caatinga. Tudo depende mais do tamanho da área disponível para este pastejo natural e da possibilidade de reservas de água.
No caso das plantas o algodão mocó é o candidato mais evidente, desde que possa usar de irrigação, pelo menos de salvação. Outras plantas têm muito potencial, como a mamona e o agave que já foram exploradas no passado, ou o pinhão bravo, objeto de estudos nunca terminados. Todas são plantas com alto potencial de mercado, mas com cobrança de experiencias concretas para que se possa propor a sua generalização. De qualquer forma, estas são apenas sugestões e as respostas podem ser muito variadas e diversificadas.
É claro que todas estas ideias enfrentam problemas de todo tipo ao sair do papel para o mundo real. A criação de caprinos, por exemplo, entrou em declínio depois de ter sido uma marca do sertanejo nordestino, devido à uma aparente benesse do legislativo.
No começo dos anos oitenta foi votada uma lei que se chamou no vulgo de “lei da cerca”. Teoricamente ela visava impedir que os criadores de gado bovino deixassem suas manadas invadirem as lavouras dos agricultores familiares. Os latifúndios foram obrigados a cercar as suas terras e manter o seu gado dentro delas. Ocorre que a lei de cercas também obrigou os agricultores familiares a cercarem as suas terras e manterem suas cabras dentro delas.
O custo para cercar as terras e para dividir os pastos nas propriedades dos AFs foi enorme e difícil de executar, sobretudo porque o gado caprino é de tipo arisco e capaz de passar cercas de muitos fios farpados. Além disso, o fato de que cessou de existir o pastoreio extensivo na caatinga, a carga animal possível dentro das cercas dos AFs ficou menor do que no sistema anterior. O resultado foi a diminuição dos rebanhos ou o sobre pastoreio implicando no desgaste da vegetação e dos solos.
Por ser um gado mais fácil de controlar e manejar muitos AFs passaram a trocar caprinos por ovinos. Foi uma solução muito parcial dado o mercado de carne de ovelha ser muito menor do que o de cabra e pelo fato de que os roubos de ovelhas são mais fáceis do que os de cabras. Por todos estes efeitos os criatórios de caprinos e ovinos diminuíram muito no semiárido.
Para concluir, não tenho resposta para estas perguntas aqui levantadas a não ser do ponto de vista dos critérios a aplicar para obter as respostas. Mas defendo que este debate seja conduzido de forma ampla pelos movimentos sociais, pelas organizações de apoio e pelos meios científicos do Brasil, de forma regionalizada e até territorializada, pois acredito que as respostas serão também diversificadas.
Jean Marc von der Weid

Presidente da UNE entre 1969 e 1971
Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983
Membro do CONDRAF/MDA entre 2004 e 2016
Consultor da FAO e do PNUD desde os anos 80
Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta


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